quarta-feira, 8 de abril de 2009

Os meninos que ninguém pode adotar

Mais de 80% das crianças em abrigos não estão disponíveis à adoção por não ser órfãs. Como mudar essa situação?
Martha Mendonça, com colaboração de Andres Vera


A voz grossa e o ar maduro não combinam com Anderson, 8 anos completados em maio, morador do abrigo Santa Clara, em Vargem Grande, zona oeste do Rio de Janeiro. “Será que demora muito para arrebentar?”, pergunta sobre a fitinha no pulso, dada por uma funcionária três dias antes. Anderson (nome fictício, como os de todas as crianças citadas nesta reportagem) não conta que pedidos fez ao Senhor do Bonfim, mas diz que quer ser jogador de futebol. “Jogo bem no ataque, mas vou ser igual ao Bruno, goleiro do Flamengo”, diz, enquanto esfrega os joelhos sujos da brincadeira no quintal. De manhã, Anderson vai à escola. Está no 2º ano de um colégio público vizinho. Orgulha-se de ser bom nas contas e de namorar duas coleguinhas. À tarde, faz os deveres e as aulas de capoeira. Livre das obrigações, corre para o quintal da casa grande, onde joga bola e sobe nas árvores, em meio a balanços e gangorras enferrujados. Sua preferida é uma jaqueira. Quando escurece, Anderson toma banho, janta – reclama quando não tem bife com ovo – e depois briga por um bom lugar nos sofás velhos da sala de televisão. Noveleiro, diz que também poderia tentar a vida como ator de novela. “É legal fingir ser outra pessoa”, afirma. Seu ídolo é Lázaro Ramos. Por volta das 23 horas, é hora de ir para a cama. Anderson dorme na parte de cima de um beliche, num quarto com mais cinco garotos, o rosto bem perto do teto pintado de verde.


A história de Anderson é igual à de milhares de crianças brasileiras. De cerca de 80 mil que vivem em abrigos do país, 87% não estão ali por ser órfãos. São meninos e meninas que têm referências familiares e, por isso, não estão disponíveis para a adoção. Vivem na fronteira entre duas possibilidades que anulam uma à outra e transformam não só seu futuro, mas também seu dia-a-dia em incerteza.

"O abrigo deveria ser medida extrema, excepcional e breve"
CARMEN OLIVEIRA, da Secretaria Especial de Direitos Humanos

Anderson chegou ao abrigo aos 5 anos, magro, calado e sem nunca ter ido à escola. Segundo a direção do abrigo, a mãe, alcoólatra, abandonou a família. O pai, ambulante, procurou um lugar provisório para o filho, enquanto tentava melhorar de vida. No começo, fazia visitas semanais. Depois, elas escassearam. Nos últimos quatro meses, o pai não apareceu mais. O espaço provisório virou o único lar de que o menino se lembra. Quando o assunto são os pais, o tagarela se torna monossilábico. É difícil falar sobre o que não sabe. A coordenadora do abrigo Santa Clara, Eliete de Castro, diz que o garoto se refere cada vez menos ao pai, embora mantenha a esperança de que ele venha buscá-lo. “Já houve vezes em que o pai telefonou, prometeu que viria e não apareceu”, afirma Eliete. Numa dessas ocasiões, o menino voltou a fazer xixi na cama. O afeto que existia em relação a ele aos poucos se transformou em silêncio.


Entre narizes sujos e dentes que faltam, vozes se sobrepõem, numa mistura de alegria e angústia pela chance de não ser apenas mais um. Por mais que tenham carinho dos cerca de dez funcionários do abrigo, que há 20 anos sobrevive de doações, os garotos querem atenção e têm a esperança de um dia ganhar um lar. A maioria está ali por causa da pobreza. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, que em 2004 fez o único estudo sobre abrigos de crianças no Brasil, 24% delas são deixadas em instituições por pais sem recursos financeiros e 11% estão nelas porque sofreram violência doméstica. Pouco mais da metade (58%) ainda tem convivência esporádica com algum membro da família. No Rio de Janeiro, um censo realizado pelo Ministério Público estadual e divulgado na semana passada constatou que 54,6% das crianças estão em abrigos ao menos há um ano e quase 30% nunca receberam uma visita. A maioria tem o perfil de Anderson: meninos, negros e entre 7 e 12 anos. Boa parte chega pelas mãos dos Conselhos Tutelares ou Varas de Família, mas há quem seja recolhido na rua por cidadãos comuns e levados aos abrigos.


É essa a origem das 22 crianças que vivem no abrigo da Liga Solidária, no Jardim Educandário, São Paulo. Ali, ninguém é órfão. A maior parte dos meninos e das meninas entre 3 e 14 anos mantém contato esporádico e irregular com a família. Em comum, contam histórias que não caberiam num lar de classe média. Os irmãos Igor e Pedro (nomes trocados), de 5 e 3 anos, moram no local desde setembro de 2005. O lugar, que funciona como educandário desde 1923, é simples e tem aconchego suficiente para quem já viveu na rua ou morou em condições insalubres. Pedro gosta de bater figurinhas e encenar peças de teatro. Ele mostra o álbum de fotos e parece já estar adaptado à casa. O mais velho, Igor, lembra o episódio violento que os separou da família – e talvez isso explique sua maior introspecção e desconfiança. O pai é vendedor de ferro-velho e não vê os filhos desde abril de 2006. É conhecido pelos funcionários como uma pessoa agressiva que intimidava as crianças nas poucas visitas que fez. “É um homem que ainda precisa aprender a ser pai”, diz um dos funcionários. A mãe está presa desde março de 2007 – em seu terceiro encarceramento por participação em assaltos. O casal tinha um relacionamento instável. Numa das discussões, o pai avançou para cima da mulher com uma faca na mão. Apunhalou-a no abdome e no ombro esquerdo. Durante o golpe, Igor estava no chão e Pedro no colo. “Enfiei uma faca na barriga dela”, disse à polícia. Depois disso, as crianças foram parar no abrigo.


No lar da Liga Solidária, falar sobre os familiares é tarefa difícil, mas os educadores estimulam a prática. “Nosso objetivo é manter o laço da criança com sua família”, diz o coordenador do instituto, Júlio César Vieira Guimarães. “Eu vi minha mãe. Ela é bonita e gosta muito de mim”, afirma Pedro, ao apontar uma foto que não mostra mulher alguma. A mãe chegou a receber as crianças na penitenciária. Depois de três prisões, perdeu a liberdade condicional. Tanto Pedro quanto Igor criaram uma espécie de fantasia anestésica para ajudar a superar a ausência materna, com histórias inventadas. “Minha mãe morreu e foi para o céu”, diz o pequeno. A funcionária afirma que eles sabem de seu histórico familiar, mas as cenas de violência são omitidas. A prática de retornar as crianças ao lar original é diretriz do Estatuto da Criança e do Adolescente, que também enfatiza o caráter provisório dos abrigos. O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, criado pelo governo no fim de 2006, propõe iniciativas de apoio social às famílias. “O abrigo deveria ser medida extrema, excepcional e breve”, diz Carmen Oliveira, subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança da Secretaria Especial de Direitos Humanos.


O primeiro passo foi começar a fazer o mapeamento nacional desses abrigos. Outra medida é estimular as chamadas “famílias acolhedoras”: lares em que as crianças ficam provisoriamente, até que o problema da original seja sanado. Em Estados como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul já existem iniciativas nesse sentido, numa parceria entre municípios e organizações não-governamentais. Diretora-executiva da ONG Terra dos Homens, a psicóloga Claudia Cabral esclarece que, durante o tempo em que a criança fica com a família acolhedora, ela mantém o vínculo com os pais. “O objetivo de todos deve ser a reorganização daquele lar, para que a criança volte”, afirma. Para que ela não perca sua referência, ONGs como o Instituto Fazendo História trabalham com a memória dos meninos abrigados. Psicólogas e voluntários traçam a trajetória de cada um por meio de fotografias, textos e desenhos. “Nos preocupa muito quando a instituição vira um lugar melhor que a casa da família, com inglês, informática, capoeira. Famílias humildes se sentem enfraquecidas”, diz a coordenadora da ONG, Claudia Vidigal.


No Lar Aura Celeste, em Marechal Hermes, subúrbio do Rio, onde vivem 15 crianças e adolescentes, também é feito esse trabalho de reaproximação. Helena Martins, coordenadora do abrigo, acredita nessa iniciativa “mesmo quando houve violência ou exploração”. Atualmente, Helena e sua equipe de assistentes sociais e psicólogas apostam na volta de Vítor e Vanessa, de 11 e 7 anos, à casa da mãe. Os irmãos foram abandonados na rua há pouco mais de um ano. Vítor sofria exploração de mão-de-obra pela mãe e pelo avô, com quem morava. Nos primeiros depoimentos à psicóloga, contou que era obrigado a levar um mínimo de dinheiro para casa ou apanhava. Também disse ter ajudado a mãe a “tirar filhos da barriga”. Chegou ao abrigo quieto e desconfiado. Fugia de abraços e beijos. Hoje, gosta de conversar, mas dificilmente olha nos olhos.

Crianças brasileiras em abrigos
Estima-se que de
80 mil a 100 mil
crianças vivam em abrigos
em todo Brasil
87%não
são órfãos, sendo
que 58%
têm convivência
esporádica com
algum membro
da família
A maioria são
meninos (58,5%),
negros (63%)
e entre 7 e 12 anos (60%)
96%
das crianças
abrigadas
freqüentam
a escola

A maior parte

é encaminhada ao

abrigo por

Conselhos Tutelares (88%)

Vanessa é carente e afetuosa. Ela se agarra a quem passa e conquista a todos. Canta, distribui desenhos de corações coloridos e chora quando algum amigo mais velho diz que seu dever de casa é fácil. “Para mim é muito difícil”, afirma. Vítor protege a irmã como a uma filha. No começo lhe dava banho e a colocava para dormir. Os irmãos vão à escola em período semi-integral. Não estudavam até chegar ao abrigo. Nos últimos três meses, as visitas da mãe se tornaram mais freqüentes. “Eu gosto quando ela vem, tenho coisas para contar”, diz Vítor. Mas não há beijos nem abraços. A mãe, que no passado se envolveu com traficantes nas comunidades em que vivia, afirma que mudou de vida. Teria entrado para a igreja evangélica. “Ainda não sabemos se será possível uma reintegração que deixe os meninos bem. Estamos tentando”, diz Helena.


Optar pela não-institucionalização tem sido o caminho de países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, famílias provisórias (“foster homes”) assumem crianças que precisam se afastar do lar, com a ajuda mensal do governo. Na Europa, predominam também os programas de recolocação familiar que visam extinguir os abrigos, restritos a órfãos para a adoção ou adolescentes para a emancipação. “Nesses países, porém, as pessoas têm menos filhos e não existe essa dimensão de pobreza. Lá, todas as instituições e famílias acolhedoras recebem auxílio financeiro e capacitação profissional. No Brasil, menos de um quinto dos abrigos recebe recursos públicos”, diz a economista Enid Rocha, coordenadora do estudo do Ipea sobre abrigos.


Segundo o IBGE, 41,4% das famílias brasileiras com filhos de até 6 anos – o equivalente a 7 milhões de lares – vivem abaixo da linha de pobreza. Menos de meio salário mínimo per capita. O resultado de tamanha escassez de recursos – somada à falta de educação e estrutura emocional – é o freqüente abandono das crianças. “Sei de histórias de famílias nordestinas que chegam a São Paulo ou ao Rio, deixam seus filhos em abrigos e nunca mais aparecem”, diz Tânia da Silva Pereira, diretora do Instituto Brasileiro do Direito de Família e criadora de programas de assistência jurídica nas Varas de Infância. Ela afirma que são necessárias medidas de urgência e defende, em alguns casos, a agilização da destituição do poder familiar, de forma que essas crianças possam estar disponíveis à adoção. “É preciso também criar iniciativas alternativas que não sejam apenas a adoção ou a volta ao lar. Se há pais, mas eles não visitam e nem sequer pensam em tomar conta de seus filhos, será que não é possível um acordo entre uma nova família e a original?”


Está para ser votado na Câmara o projeto da Lei Nacional da Adoção, que determina, entre outros pontos, a agilização da retirada do poder familiar. O autor, o deputado João Matos (PMDB-SC), diz que, atualmente, o tempo médio para a conclusão de um processo de adoção é de quatro anos, devido especialmente ao rigor de alguns juízes e à burocracia dos órgãos dos Estados. “Quando fica claro que os laços foram desfeitos, não há por que fazer uma criança esperar anos e anos por algo que não virá. A conseqüência é que ela sai de lá adulta, sem preparo para o mercado de trabalho nem para o convívio comunitário”, diz. O incentivo à adoção esbarra em uma dura realidade. Quase metade (46%) das crianças que estão em abrigos não tem nenhum acompanhamento judicial ou do Ministério Público – o que dificulta o interesse de possíveis famílias adotivas. Mesmo que haja a destituição do poder familiar, a maior parte dos abrigados é o avesso do perfil procurado para adoção: meninas, brancas, de até 1 ou 2 anos de idade.


Se a disponibilidade para a adoção não contempla todo o problema e o retorno ao lar depende de uma mudança em toda a estrutura social do país, milhares de meninas e meninos abrigados tendem a continuar seus destinos de pequenos cidadãos, sem as referências e a identidade a que têm direito – sem falar nos que vivem em lugares sem conforto e afeto –, fadados a um futuro que repete a desigualdade social que os tirou de suas famílias. O economista recém-formado William Prudêncio, carioca, de 23 anos, sabe que é uma exceção. Depois de ser abandonado pela mãe aos 8 anos e viver na rua por dois, criou-se no abrigo Santa Clara – o mesmo de Anderson –, onde, apesar de longe da família, superou o atraso nos estudos e a instabilidade emocional. “Desde pequeno meu sonho era estudar”, diz. Só foi à escola a partir dos 14 anos, mas a vontade de aprender o fez pular de série em série escolar. Comprou livros em sebos, estudou línguas, entrou em uma universidade pública. No ano que vem, forma-se em outra faculdade: Relações Internacionais. Graças a estágios e um trabalho no campus, alugou um apartamento. Nos fins de semana, quando não está estudando para o mestrado, vai ao abrigo dar aula de capoeira às crianças. “Sei que, por tudo o que superei, sou um exemplo para elas, mas procuro não pensar muito nisso. Aprendi a deixar o passado de lado e focar no futuro”, afirma. Infelizmente, William é apenas um em uma multidão.

Principais motivos para viverem em abrigo

24% Carência de recursos materiais da família
19% Abandono dos pais ou responsáveis
12% Violência doméstica
11% Dependência química dos pais ou responsáveis
7% Vivência de rua
5% Orfandade
3% Prisão dos pais
3% Abuso sexual pelos responsáveis
16% Outros


Fonte: http://revistaepoca.globo.com 31/07/2008

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